Afastamento de Felipe e o assédio moral no futebol: uma prática tradicional composta de ambiguidade
Responsabilidades entre clube e atleta podem ser confundidas; no caso corintiano, fim deve ser litigioso
Fonte: Universidade do Futebol - www.universidadedofutebol.com.br
Responsabilidades entre clube e atleta podem ser confundidas; no caso corintiano, fim deve ser litigioso
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Bruno Camarão
A história entre Felipe e Corinthians não deverá ter um desfecho longe dos processos judiciais. Pelo menos é o que sinalizam as posturas de atleta e clube nesta semana, quando notas oficiais e réplicas foram divulgadas à imprensa com o intuito de estabelecer os anseios, dúvidas e descontentamentos de parte a parte. A começar pelo próprio ex-camisa 1 da equipe paulista.
O goleiro deixou claro que não pretende mais atuar pelo Corinthians. Felipe treinava afastado do grupo desde que tentou sua transferência para o Genoa – durante o período de disputa da Copa do Mundo – e acusa a instituição alvinegra de assédio moral. Além de requerer a rescisão do contrato, ele acionou o sindicato dos atletas para manifestar seu desprazer. Mas a presidência corintiana rechaçou o pedido.
"O Sport Club Corinthians Paulista refuta com veemência tais alegações, formuladas por pessoas que deveriam defender os interesses de seu representado e acabam por prejudicar a própria carreira do mesmo. O Corinthians não assedia moralmente nem humilha seus atletas ou qualquer outro funcionário de seus quadros. E mais: o goleiro Felipe representa um verdadeiro patrimônio para o Corinthians, patrimônio este cujo valor seus representantes insistem em aviltar, sabe-se lá movidos por qual interesse", comunicou o clube, em nota oficial.
Após ver a transação para o time italiano abortada, Felipe retornou ao Corinthians, mas desde então vinha realizando atividades à par do grupo principal, que se concentra e participa das partidas oficiais pelo Campeonato Brasileiro. Esta condição excludente do elenco motivou o jogador a solicitar seu desligamento da agremiação.
No caso em questão, como explica o advogado Gustavo Lopes Pires de Souza, o assédio moral é instituto do Direito do Trabalho aplicável nas relações entre entidades esportivas e atletas. Por assédio moral entende-se a exposição dos trabalhadores a situações aviltantes, humilhantes e constrangedoras de maneira prolongada e repetitiva durante o trabalho. A doutrina define como manipulação perversa ou terrorismo psicológico.
“É prática mais comum do que se imagina e traz ao trabalhador em alguns casos até mesmo doenças como a depressão”, aponta o jurista especializado nesta esfera e autor do livro Estatuto do Torcedor: A Evolução dos Direitos do Consumidor do Esporte (Lei 10.671/2003).
A conduta que causa o assédio moral pode se dar de várias formas, como, por exemplo: suspiros, sorrisos, trocadilhos, jogo de palavras de cunho sexista, indiferença, erguer de ombros, olhares de desprezo, silêncio forçado, ignorar a existência da vítima, ou pode se dar através da fofoca, zombarias, insultos, deboche, isolamento, ironias e sarcasmo.
“No caso em comento, em razão da tentativa de se transferir para o Genoa, o goleiro Felipe teria sido afastado (isolado) do grupo como retaliação. Tal conduta configuraria justa causa do empregador e levaria à rescisão indireta do contrato de trabalho, ou seja, o contrato seria rescindido e o clube ainda teria que indenizar o goleiro”, argumentou.
Na avaliação de Gustavo, a defesa do clube seria conseguir justificar o motivo do afastamento do atleta a fim de afastar a hipótese de tê-lo feito como retaliação e no intuito de expor o jogador a uma situação constrangedora. Mas por conta de o goleiro ter construído trajetória com performance bem razoável e se manter como titular ao longo dos últimos três anos, a defesa pode se complicar.
“Talvez a linha aparentemente adotada de que se trata de patrimônio do clube e que teria sido uma decisão técnica ou por problemas de relacionamento possa ser boa. Contra esta tese paira o fato de o atleta não ter sido disponibilizado para transferências”, completou.
Fato é que o afastamento de atletas é uma prática antiga, com viés muitas vezes ditatorial, acompanhando dirigentes e coordenadores técnicos de clubes nacionais. Na última temporada, por exemplo, quando estava ligado ao Santos, sob o comando do treinador Vanderlei Luxemburgo, o zagueiro Domingos teve seu vínculo com o departamento profissional encerrado.
A justificativa de Luxemburgo era que o atleta apresentava postura viril, colocando em risco a integridade física de alguns companheiros – tal opinião foi expressa inclusive na página privada mantida pelo técnico em um portal de notícias. Domingos, então, foi orientado pelo presidente do sindicato dos atletas de São Paulo, Rinaldo Martorelli, a contestar a decisão do seu clube empregador à época. O mesmo amparo valeu para a situação envolvendo o goleiro Felipe.
“O Corinthians vem constrangendo o atleta publicamente, diminuindo seu trabalho, determinando treinos isolados, sem qualquer preparação adequada, além da ausência de treinador específico para orientar sua função. Essas imposições são completamente incompatíveis com a posição que, hoje, o atleta ocupa perante o clube e o público. Vale lembrar que todo Ordenamento Jurídico Brasileiro proíbe, de forma veemente, qualquer ato discriminatório contra qualquer cidadão. Nas relações de trabalho o rigor da Lei é ainda maior”, disse em publicação o órgão representativo.
Nesta quarta-feira, o jogador, que anteriormente fora representado por texto assinado pelos seus procuradores, pronunciou-se em carta. Ele afirma não ter culpa pela não concretização da transferência para o Genoa e revela estar sendo perseguido no Corinthians por alguém “muito poderoso”.
Porém, Felipe cai em contradição com seus empresários, que condicionaram o fracasso na transferência internacional à mudança da legislação na Itália, que permitiria uma quantidade menor de jogadores extra-comunitários. Na versão do goleiro, sua transferência não se efetivou devido “a um bloqueio judicial no meu certificado por conta de dívidas”.
“Pela notícia, não dá para saber o que aconteceu exatamente. A fim de evitar qualquer mal entendido com os amigos corintianos, principalmente os Drs. Domingos Sávio Zainaghi e Felipe Legrazie Ezabella, opto por não comentá-la a até sair algo mais claro”, ponderou Fábio Sá Filho, Diretor Presidente e Sócio-Fundador do Instituto Pernambucano de Direito Desportivo (IPDD) e Membro da Asociación Iberoamericana de Derecho del Trabajo y de la Seguridad Social (AIDTSS).
De acordo com o especialista, o fato de treinar em separado, pura e simplesmente, não causa humilhação ao atleta, mas pode vir a ser motivo para rescisão por justa causa, uma vez que o clube não estaria dando justificadamente oportunidades de trabalho ao empregado, descumprindo cláusula contratual, nos moldes do art. 483, alínea d, da CLT, devendo-se atentar ainda para o seu § 3º:
“Art. 483 - O empregado poderá considerar rescindido o contrato e pleitear a devida indenização quando:
(...)
d) não cumprir o empregador as obrigações do contrato;
(...)
§ 3º - Nas hipóteses das letras "d" e "g", poderá o empregado pleitear a rescisão de seu contrato de trabalho e o pagamento das respectivas indenizações, permanecendo ou não no serviço até final decisão do processo. (Incluído pela Lei nº 4.825, de 5.11.1965)”.
“Ainda falta muito o que ser esclarecido. Pode ter acontecido de algum dirigente ou outro superior hierárquico tê-lo agredido verbalmente e isso vir a ser enquadrado como um ato de humilhação. É muito comum. No entanto, nada foi publicado neste sentido ainda, tampouco provado”, apontou Fábio.
“O que mais se faz no dia-a-dia do futebol é vista grossa com relação às constantes humilhações sofridas pelos atletas em vários esportes e no mundo todo”, finalizou.
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