Gilead não nasceu do nada. A República fictícia criada por Margaret Atwood em O Conto da Aia é o resultado de uma sequência cronometrada de negligências, crises e oportunismos — algo que qualquer brasileiro atento saberia identificar sem precisar abrir o livro. Crise ambiental, queda de natalidade, terrorismo, medo, e um golpe institucional com respaldo religioso: ingredientes bem conhecidos na história da humanidade.
A Constituição dos Estados Unidos é suspensa, o Judiciário é desmontado, os direitos das mulheres evaporam, e uma nova ordem social passa a reger os corpos — especialmente os femininos — sob o pretexto de uma “reconstrução moral”. Gilead é uma teocracia, mas também um experimento político autoritário travestido de zelo com a família. É um Estado que não governa, doutrina. Que não protege, vigia.
Na geopolítica distópica da obra, o mundo olha para Gilead com o mesmo desconforto com que assistimos a regimes reais que rasgam tratados internacionais e calam dissidentes em nome de tradições, deuses ou pátrias. O Canadá vira rota de fuga. Há resistência interna. E há diplomacia, porque até regimes totalitários sabem sorrir para fotos quando convém.
O mais perturbador é que Atwood não inventou nada. Cada pilar de Gilead tem paralelo histórico: controle de natalidade baseado na fé? Já vimos. Mulheres reduzidas a funções reprodutivas? Também. Supressão de liberdades civis em nome da “moral”? Infelizmente, nada novo.
Gilead, portanto, não é uma ficção sobre o futuro. É um espelho do presente que nos pergunta: até onde deixaremos ir antes de dizer que basta?
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