sábado, 20 de novembro de 2010

CR/88 E JUSTIÇA DESPORTIVA

CONSTITUIÇÃO E JUSTIÇA DESPORTIVA – PARTE I.

Autor: Milton Jordão[1]
Caros leitores,

A presente coluna nasceu de um debate que levei ao TJD/FEBRASA, no mês de maio, quando ali se realizou o Momento Cultural Jusdesportivo, concebido e capitaneado pelo Nobre Dr. Joacy Bastos, sem dúvida alguma, um dos baluartes do Direito Desportivo deste Brasil. Some-se, ainda, ao meu empenho (embora tardio) de escrevê-las às salutares instigações dos amigos da Lista de Emails CEV-Leis, especialmente, na pessoa do Ademar.
Para melhor expor o assunto, que é denso, dividirei a abordagem em três momentos: o direito desportivo disciplinar e suas relações com outros ramos do direito; a coexistência harmônica entre celeridade, a ampla defesa e o contraditório; e, atuação constitucional do membro de TJD.
Pois bem. O tema que me proponho discutir a partir deste momento é, ao meu sentir, essencial ao bom andamento da Justiça Desportiva, este relevante braço do Direito Desportivo[2]. Cediço que este ramo do direito, passa hodiernamente a ser visto como autônomo, uma nova realidade que se descortina diante dos operadores do Direito e requer uma especialização. Quiçá, no Brasil, o debate em torno da autonomia se deva aos reflexos dos vindouros megaeventos desportivos no país, que passam a exigir profissionais mais conhecedores das intersecções entre Esporte e Direito. À guisa de exemplo, veja-se que na última semana, quando se realizou uma prova de Fórmula 1, no autódromo de Interlagos, em São Paulo, a declaração de um Promotor de Justiça ocasionou debates intensos em programas de televisão e na opinião pública sobre a possibilidade de se aplicar o Estatuto do Torcedor, caso houvesse o chamado “jogo de equipe” por parte do piloto Felipe Massa (ou qualquer outro piloto, naturalmente), visando permitir que o seu companheiro, Fernando Alonso, ganhasse a prova ou posição[3].
Assim, saliento, que não se pode mais ver o Direito Desportivo como um ramo “retalhado”, cujas partes se encontram no Direito Tributário, Trabalhista, Comercial, Civil, Penal, etc. Talvez, a única exceção seja a Justiça Desportiva, cujos fundamentos jurídicos se encontram em código próprio, concebido pelo Ministério do Esporte. A especialização se impõe, as intersecções do direito desportivo com outros ramos merecem ser analisadas com mais rigor e por quem seja capacitado para tanto. Por exemplo, no âmbito da justiça laboral, evidencia-se que o magistrado que desconhece as peculiaridades da atividade de um atleta profissional de futebol e, querendo, aplicar as regras próprias a um trabalhador comum, regido essencialmente pela CLT, produzirá distorções na realidade fático-jurídica. Destarte, deveriam os Tribunais Regionais do Trabalho destinar tais feitos a unidades judiciárias competentes (varas com competência exclusiva) para apreciar tais feitos, onde um magistrado pudesse se especializar no estudo destes casos, ao invés de querer conferir uma isonomia entre relações desiguais. Não sem razão, o legislador ordinário criou o Juizado Especial do Torcedor[4].
Sem querer me alongar mais, pretendo deixar claro que o Direito Desportivo é autônomo e precisa ser tratado assim. Igualmente, tal autonomia legal precisa ser incentivada e ampliada no âmbito do Direito Desportivo Disciplinar, ou seja, no âmbito da Justiça Desportiva. Não obstante os operadores a reconheçam como independente, como dito antes, o segmento que não se socorre noutra legislação, afinal, existe código próprio, desde muito[5].
Com efeito, esta legislação desportiva – que em seus primeiros momentos abrigou os direitos trabalhistas dos atletas-, teve nítida inspiração nos regramentos Penal e Civil. Por certo, os seus aplicadores se socorriam dos princípios de direito penal e civil para resolver impasses fruto de lacunas dos códigos. Aqui reside o nosso debate.
Este costume dos juristas que integram os Tribunais de Justiça Desportiva é visível aos se proferir um voto, redigir um acórdão, adotar posturas mais ou menos flexíveis, em virtude da sua formação enquanto profissional do direito. Diz-se isso, por exemplo, ao se perceber que um auditor que seja penalista prime com mais vigor pelo zelo ao processo, à amplitude de defesa e contraditório. De igual sorte, pode-se dizer que os processualistas civis serão mais inflexíveis em relação às formalidades do sumário de culpa, não admitindo, por exemplo, uma nova produção de prova, mesmo que seja esta crucial ao deslinde do feito.
Em síntese assevero que a Justiça Desportiva abriga em seu seio operadores que atuam nas mais diversas áreas do direito, na sua maioria advogados, e que, por vezes, em momentos em que o código não é deveras claro ou se revela lacunoso, trazem para o julgamento os valores da área em que militam. Quer dizer, os princípios, a técnica, os conceitos conferidos a determinadas expressões, etc.
Seguramente, isso enriquece o julgamento do feito, todavia, pode causar dúvidas de como se proceder noutros casos. Ao nosso sentir, mister se imporá aos membros de Tribunais de Justiça Desportiva uma mudança de postura. É necessário que se reconheça o Direito Desportivo Disciplinar enquanto ramo autônomo, portanto, o Código de Justiça Desportivo não poderá sofrer tais influências de matrizes penal, civil, trabalhista, ou de qualquer outro ramo jurídico.
O Direito Desportivo Disciplinar é submisso somente à Constituição Federal. A Lei Maior ao conferir autonomia à Justiça Desportiva - aqui encarada como instituição apta a julgar feitos que versem sobre competições e questões disciplinares - alçou o direito desportivo disciplinar ao patamar de igualdade em relação aos demais ramos jurídicos. Por certo, optou o Estado Brasileiro por defini-lo por meio de resolução de um de seus ministérios, e não por Lei Federal.
Logicamente, advém o questionamento se o Código Penal (CP) ou Código de Processo Penal (CPP) ou Civil (CPC) não seriam hierarquicamente superiores ao Código de Justiça Desportiva. A princípio, responder-se-ia positivamente a este questionamento. Quando, em verdade, aparentemente, tem-se tal hierarquia. Diz-se isso, pois embora seja inegável que a lei federal, na lógica kelseniana, é superior a uma resolução editada pelo Ministério do Esporte, não se poderá admitir a interferência do Direito Penal ou Civil (ou qualquer outro) sobre o ordenamento jusdesportivo. O que pode se ter é uma ofensa à Constituição Federal. Por exemplo, recordemos da antiga redação do art. 253 (agressões físicas), que instituía pena de suspensão mínima de 120 dias. Evidencia-se uma clara ofensa à proporcionalidade que demanda a Carta Maior quando comparamos que o ilícito penal de lesões corporais leves adotava como pena mínima a privação de liberdade por noventa dias.
Assim sendo, o azimute dos Tribunais de Justiça não deve ser outro senão a Lei Fundamental, por duas razões: primeiro, porque somente desta maneira o direito desportivo disciplinar efetivará sua autonomia plena; segundo, porque este foi o desejo do legislador constituinte ao consagrar a instituição Justiça Desportiva como independente, sendo, posteriormente, seguida pelo legislador ordinário (Lei Pelé). A lei da disciplina desportiva não está submetida a valores inerentes ao direito penal, embora, a ele se assemelhe. A sua dependência é exclusiva da Constituição.
D’outro giro, não se poderá admitir sejam incorporadas regras e normas do direito penal, civil, processual penal ou civil, ou qualquer outro que seja, sem que estas regras e normas tenham sido admitidas no Código de Justiça Desportiva ou uma aplicação complementar ou subsidiária tenha sido ali reconhecida. Veja-se, por exemplo, que o CPC é adotado subsidiariamente ao CPP ante lacunas ali existentes, consoante autorização do art. 3° daquele diploma[6] e jurisprudência emanada no STF[7].
Observe-se que, no âmbito do direito desportivo disciplinar, houve um zelo por parte do “legislador” (o Conselho Nacional do Esporte), ao construir no art. 283, CBJD, a seguinte redação, encerrando em o debate sobre a interpenetração de outros princípios ou valores, normas ou técnicas, que não sejam de natureza constitucional, no que concerne às infrações e penas:
Art. 283. Os casos omissos e as lacunas deste Código serão resolvidos com a adoção dos princípios gerais de direito, dos princípios que regem este Código e das normas internacionais aceitas em cada modalidade, vedadas, na definição e qualificação de infrações, as decisões por analogia e a aplicação subsidiária de legislação não desportiva. (Redação dada pela Resolução CNE nº 29 de 2009).

A restrição feita cinge-se, exclusivamente, ao aspecto material do direito desportivo disciplinar, o que, soa como uma autorização para que, quanto ao processo, se admita aplicação subsidiária de outros diplomas. Dir-se-ia que tal inferência não é de toda equivocada, todavia, mister se impõe, num primeiro momento, que as lacunas sejam regidas por princípios gerais de direito em consonância com o rol de princípios definidos no CBJD, sempre tendo como guia maior a Constituição Federal, bem como os interesses de “defesa da disciplina, da moralidade do desporto e espírito esportivo”(art. 282, CBJD).
A primeira abordagem entre Constituição e Justiça Desportiva se encerra com a conclusão de que ela não é tributária de outros ramos do direito, ou mesmo, deles dependentes, é autônoma, apesar de, aparentemente, ser considerada hierarquicamente inferior. Contudo, a sobredita inferioridade inexiste, aliás, existe, quando os seus operadores, seja por costumes ou vícios, deixam de dar vazão a tal comando constitucional.
[1] O autor é Advogado Criminalista, Procurador do Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol da Bahia, Diretor Presidente do Instituto de Direito Desportivo da Bahia, Colunista dos sites do IBDD e IDDBA. E-mail: mjordao@iddba.com.br.
[2] Inclusive, denomino a Justiça Desportiva como sendo o Direito Desportivo Disciplinar.
[3] Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/esporte/825187-monica-bergamo-massa-pode-ser-preso-se-der-passagem-a-alonso-no-gp-brasil-diz-promotor.shtml. Acessado em 15/11/2010.
[4] Conferir Lei n° 10.671/2003: Art. 41-A. Os juizados do torcedor, órgãos da Justiça Ordinária com competência cível e criminal, poderão ser criados pelos Estados e pelo Distrito Federal para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes das atividades reguladas nesta Lei.
[5] O primeiro diploma desportivo disciplina foi o Código Brasileiro do Futebol, fruto das resoluções 45/46, do Conselho Nacional de Desportes (CND), em 1946.
[6] Art. 3o A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito.
[7] STF, AI 664567 QO/RS, Rel. Min. Sepúlveda Pertence; RHC 83.181, Rel. Min. Joaquim Barbosa

Nenhum comentário:

Postar um comentário