A Não-Monogamia como Evolução Social e a Construção da Monogamia na Lógica Cristã
A monogamia, enquanto modelo de relação afetivo-sexual predominante no Ocidente, está profundamente enraizada na lógica cristã. No entanto, o avanço dos debates sociais sobre afetividade, liberdade sexual e relações humanas tem provocado uma reavaliação desse modelo, dando maior visibilidade à não-monogamia. Mais do que uma alternativa "moderna", a não-monogamia representa o resgate de uma pluralidade de formas de relacionamento que existiram e coexistem em várias culturas ao redor do mundo.
A Origem da Monogamia: Construção Histórica e Lógica Cristã
A monogamia nem sempre foi a norma. Sociedades antigas, como as gregas e romanas, toleravam múltiplas formas de relação, como a poligamia e a poliandria. O próprio Antigo Testamento, base do cristianismo, apresenta figuras como Abraão, Jacó e Davi, que tiveram múltiplas esposas e concubinas. No entanto, o cristianismo, ao se consolidar como força hegemônica no Ocidente, passou a promover a monogamia, transformando-a em uma "moral natural" e "lei divina".
Essa imposição não foi apenas teológica, mas também política e econômica. Controlar a reprodução e a herança patrimonial tornou-se uma forma de consolidar o poder das famílias patriarcais e preservar os bens nas mãos de uma linhagem específica. O casamento monogâmico serviu, assim, como uma ferramenta de controle social e sexual, especialmente sobre as mulheres. A fidelidade feminina passou a ser exigida para garantir a "pureza" da descendência, enquanto a infidelidade masculina foi historicamente mais tolerada.
Além disso, a monogamia cristã foi reforçada por dispositivos jurídicos e sociais. O Concílio de Trento (1545-1563) formalizou o casamento monogâmico como sacramento indissolúvel, eliminando outras formas de relação. No Código Civil brasileiro, até recentemente, a "união estável" exigia comprovação de monogamia, o que impedia qualquer reconhecimento jurídico de relações não-monogâmicas.
Portanto, a monogamia não é "natural" nem "universal". Ela é uma construção social e religiosa que foi naturalizada por séculos de doutrinação cultural. A lógica cristã fez da monogamia um modelo hegemônico, ao ponto de ser associada ao "amor verdadeiro" e à "família tradicional", conceitos que hoje estão sendo amplamente questionados.
A Não-Monogamia: Resgate Cultural e Evolução Social
Com o avanço das discussões sobre gênero, sexualidade e autonomia individual, a não-monogamia emergiu como um modelo alternativo. Mas, ao contrário do que muitos pensam, ela não é uma "moda moderna". Diversas culturas indígenas, africanas e asiáticas sempre aceitaram múltiplas formas de relacionamento. O colonialismo e a cristianização dessas sociedades suprimiram essas práticas, impondo o modelo monogâmico europeu.
A não-monogamia contemporânea, em suas várias vertentes (poliamor, relacionamento aberto, anarquia relacional), propõe uma ruptura com a lógica de "posse" que marca a monogamia. Se na monogamia há uma expectativa de exclusividade sexual e afetiva, a não-monogamia defende a autonomia dos sujeitos para estabelecer relações múltiplas baseadas na confiança e na comunicação.
Esse modelo se conecta a princípios como:
Autonomia e Liberdade: As pessoas têm autonomia para decidir como se relacionar e com quem se relacionar. Não há a imposição de exclusividade afetivo-sexual como norma.
Transparência e Comunicação: As relações não-monogâmicas exigem níveis elevados de comunicação e honestidade. Não se trata de "traição", mas de consentimento.
Despatologização do Desejo: A não-monogamia rompe com a ideia de que o desejo por outras pessoas é "pecado" ou "fraqueza moral", abrindo espaço para uma sexualidade mais livre.
Descolonização do Afeto: Sociedades africanas e indígenas pré-coloniais já praticavam formas de não-monogamia. Assim, ao questionar o modelo cristão de relação, as pessoas também questionam o legado colonial e eurocéntrico.
Conclusão
A não-monogamia surge como um movimento social e filosófico de resistência contra a lógica cristã e patriarcal da monogamia. Mais do que uma escolha individual, é uma crítica aos modelos de controle do desejo, do corpo e do afeto. O modelo monogâmico, que se apresenta como "natural" e "divino", é, na verdade, uma construção cultural e religiosa imposta pela lógica cristã e pelo poder patriarcal.
Ao questionar esse modelo, a não-monogamia propõe uma nova ética relacional baseada na autonomia, na liberdade e na diversidade afetiva. Se o amor não é posse, então por que a monogamia deveria ser a única forma válida de amar?
Gustavo Lopes Pires de Souza
Doutor Honoris Causa em Direito, Gestão e Polimatia pela EBWU (EUA), Mestre em Direito Desportivo pela Universitat de Lleida, Bacharel em Direito. Lic. Ciências Sociais. Membro de diversas academias e comissões
Nenhum comentário:
Postar um comentário